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Orchestra Machine
Roberto Freitas - Marcelo Comparini - O Grivo 

Música-máquina

 

Por Victor da Rosa

 

Ao participar de uma das audições do projeto Máquina Orquestra, no Conservatório de Música da UFMG, em Belo Horizonte, tornou-se inevitável lembrar de John Cage e seu célebre ensaio publicado em 1974, há exatamente quarenta anos, “O futuro da música”. Em suas páginas iniciais, curiosamente Cage trata não do futuro, mas do passado, pelo menos em sentido estrito: lembra de Varèse e sua primeira peça só para percussão, Iosination (1930), e lembra também da inclusão na música moderna daqueles “sons formalmente considerados fora do tom”, que “agora são chamados de microtons”. Meio ironicamente, como era característico em suas intervenções, Cage afirma que “questões estritamente musicais não são mais questões sérias”, defendendo assim uma indistinção entre “sons musicais e barulhos”, que é o horizonte mais amplo de sua reflexão. “As pessoas distinguiam entre sons musicais e barulhos. Eu segui Varèse e lutei pelos barulhos”, resume o músico.

Máquina Orquestra é um encontro entre quatro artistas visuais, e isso também faz dele um projeto essencialmente musical, pensando mais uma vez com Cage, para quem “a natureza social da música, a prática de usar um certo número de pessoas fazendo coisas diferentes para realizá-la, é que a distingue das artes visuais, a faz tender para o teatro”. Juntando-se à dupla O Grivo, composta há mais de vinte anos por Nelson Soares e Marcos Moreira, também Roberto Freitas e Marcelo Comparini participam da orquestra, tanto na criação dos objetos, sendo maioria deles de natureza musical, quanto na realização do concerto propriamente, ou seja, na invenção também dos procedimentos. Em comum, em suas próprias trajetórias, os quatros artistas compartilham o interesse pela construção de engenhocas que, por sua vez, geram ações estranhas e quase sempre inconsequentes, sons inusitados ou mesmo projeções bastante simples, e é justamente este interesse comum que está no centro do encontro de Máquina Orquestra.

No caso específico da dupla O Grivo, embora o impacto visual de suas máquinas nem de longe possa ser negligenciado, sem dúvida é a música (ou talvez melhor, o som) que serve como fim de suas pesquisas. “Quando usamos uma lata velha, não é porque a achamos atraente visualmente, mas porque o som da lata é interessante, apesar de buscarmos uma visualidade equilibrada”, dizem os artistas em uma entrevista concedida a José Augusto Ribeiro, por ocasião da 28a edição da Bienal de São Paulo. Depois, as referências ao som aparecem tanto nos objetos que são apropriados e alterados (vitrolas, metrônomos, gravadores, instrumentos de cordas) quanto mais propriamente no resultado das instalações, assim como na própria formação dos dois integrantes, que iniciaram suas trajetórias criando música para outros artistas e até hoje realizam trilhas sonoras para filmes, por exemplo. Se pensarmos em um objeto como o excelente “Octeto de radiolas”, de 2009, a influência de Cage mais uma vez fica explícita: trata-se de uma radiola preparada, lembrando do piano alterado do músico norte-americano. 

No caso da Máquina Orquestra, projeto que é tratado também como “performance audiovisual”, a instalação pode ser vista como uma grande “pianola preparada”, já que a pianola é lembrada também através dos rolos de papel perfurado que, durante a execução das peças, e alimentando estas execuções a seu modo, se movimentam em ritmo monótono, até desaparecerem. A orquestra só termina, de fato, quando os rolos se consomem inteiramente, o que faz deles aliás a parte central da instalação, ou seja, a potência a partir da qual todas as outras forças são ativadas, como em uma partitura. De acordo com Roberto Freitas, é a partir da leitura de dados impressos nos rolos de papéis, e na transformação desses dados em “pulsos elétricos binários”, que outras pequenas máquinas do concerto podem funcionar, produzindo sons diversos. Isso só é possível, finalmente, por conta da mediação de um hardware que realiza a conversão dos sinais em som, o que faz pensar também em uma intensa relação entre tecnologias mais avançadas e maneiras mais precárias de produzir música, que é também uma relação entre música acústica e eletrônica.

Na entrevista já mencionada, Nelson Soares e Marcos Moreira disseram também que a pesquisa do coletivo é caracterizada pela tentativa de “descobrir uma forma de ação musical a cada nova peça”, depoimento que é interessante por mais de um motivo. Trocando em miúdos, a tentativa consiste na descoberta de novos processos, e não exatamente novos produtos. Nesse caso, O Grivo parece rezar a cartilha vanguardista, já que os grandes dadaístas não desenvolveram obras, por assim dizer, e sim inventaram procedimentos para que as obras pudessem ser realizadas sozinhas – e assim aconteciam de modo inexpressivo ou, por outra, através de uma expressividade não-intencional. Grande parte das máquinas da dupla são feitas de maneira a trabalharem sem o controle humano, quer dizer, se alimentam e executam sua própria música sem a necessidade de controle externo, sistema que poderia ser chamado de autopoiesis. Por outro lado, nada possui aparência mais artesanal do que as exposições dos artistas, e é esse paradoxo que faz da Máquina Orquestra uma experiência complexa, sem limites. Eis enfim outro aspecto que ecoa das páginas do ensaio de Cage: a preferência pelos processos, e não tanto pelos objetos em si, o que não significa um desinteresse pelos objetos. “Já há um certo tempo que eu prefiro processos a objetos apenas por essa razão: processos não excluem objetos”, explicou o músico.

Além do fato de que a própria orquestra é uma grande instalação, há também imagens em vídeo espalhadas pelo palco e que funcionam enquanto as peças são executadas. Mais do que isso, os vídeos exibem, em tempo real, as próprias peças sendo executadas. Nesse caso, ao mostrar o processo mesmo de execução da orquestra, os vídeos sugerem também esta auto-exposição do sistema, estabelecendo uma relação circular e, portanto, meio demoníaca com o tempo. Cage chamou esta relação de momento-agora (nowmoment), formulada na expressão “estamos quando estamos”. Maquina Orquestra, portanto, embora seja de fato uma orquestra, não é qualquer orquestra. Talvez seja, no entanto, se quisermos jogar com as palavras, uma orquestra qualquer, no sentido de que nela qualquer pessoa pode ser um músico, inclusive as máquinas. A duplicidade do título, que lembra o Papel-Máquina de Derrida, fica sendo outro modo de dizer que o futuro da música chegou. E ele, indo do silêncio ao groove, das variações mais simples aos processos mais complexos, e lembrando do próprio sentido de “grivar”, nos estremece como um veleiro que navega rodeado de vento.

Encrenca sonora
Uma conversa sobre a Máquina Orquestra por Kamilla Nunes e Lucila Vilela 

Concebida pelos artistas O Grivo (Nelson Soares e Marcos Moreira), Marcelo Comparini e Roberto Freitas, a Máquina Orquestra surgiu de uma colaboração na qual as pesquisas individuais dos artistas deram lugar a uma investigação que se materializou em uma instalação performática. Nesta entrevista, que ocorreu após a apresentação no Museu de Arte de Santa Catarina em 2017, os artistas contam um pouco dos aspectos técnicos e conceituais desse processo, bem como das especificidades da residência realizada através do Programa Rede Funarte Artes Visuais 10a Edição e do Prêmio Elisabete Anderle 2014. 

Kamilla Nunes e Lucila Vilela - A Máquina Orquestra surgiu de um encontro entre vocês, imaginamos que por questões de afinidade de linguagens referentes às suas produções individuais. Gostaríamos de saber em que momento vocês decidiram desenvolver um trabalho juntos. Por que uma máquina orquestra? 

Roberto Freitas - Acho que resolvemos trabalhar juntos quando conhecemos o trabalho uns dos outros. Em particular eu tinha vontade de trabalhar com os mineiros do Grivo e vontade de trabalhar com o Marcelo, essa vontade virou um projeto em busca de financiamento para uma residência onde pudéssemos conviver e descobrir pontos de intersecção entre nossos trabalhos. Meu trabalho, assim como os trabalhos dos outros participantes, flerta com multimeios. No meu caso a música, a pintura, a animação e a eletrônica são essenciais. Esse encontro foi a oportunidade de pensar o meu trabalho de um ponto de vista mais colaborativo, mais generoso e isso expandiu muito minha percepção sobre as possibilidades de produção em arte. Posso dizer que ganhei muito com o processo e fiquei muito feliz com os resultados, que não é o meu trabalho, não é o trabalho do Marcelo nem o do Grivo, mas algo entre, que não poderia existir fora deste espaço. 

KN e LV - Pelo que pudemos acompanhar do processo de criação da Máquina Orquestra, todos os elementos que a constituem são desenvolvidos por vocês: o design, a criação de circuitos, a elaboração das partituras, a marcenaria e os próprios instrumentos/engenhocas manipulados durante a performance. É fundamental para o projeto que vocês estejam envolvidos diretamente em todas essas etapas de criação/construção? 

Marcos Moreira (O Grivo) - Fazer com as próprias mãos é imprimir a impressão digital nos objetos. Cria-se uma certa unidade, tem mais identidade. Há nos instrumentos um aspecto esvoaçante, pouco espesso, despreocupado, aprazível, divertido. Nada mal, uma solução artesanal. 

Marcelo Comparini - Essa situação de envolvimento é a que, para nós, mais realiza o potencial maquínico da máquina, digo também da megamáquina que estamos em relação. São processos operatórios, empíricos, hermenêuticos que se efetuariam com outra expressão se fossem delegados a terceiros. Esses elementos citados (criação de circuitos, marcenaria, elaboração de partituras, design, etc.) são limiares onde nos colocamos a trabalhar na duração em que o projeto (no sentido do compromisso institucional que agencia e viabiliza nosso encontro) determina. Em outra escala de tempo, por exemplo, poderíamos acompanhar o crescimento da árvore da qual usaríamos a madeira, talvez guiássemos os galhos para que crescessem de tal forma que nos interessasse mais, mas adquirimos a madeira cortada em ângulos retos porque assim ela é oferecida no mercado e isso também se expressa. Penso que dessa mesma maneira estamos em relação com o que seja sonoro (não digo musical) ou com o que seja trabalho (não digo arte) no campo da cultura, com os legados com os quais dialogamos no âmbito do Máquina Orquestra. A criação, de fato, é pequena, é como nos compomos nessa natureza maquinal, é um arranjo das virtualidades que o filtro do nosso encontro atualiza. 

RF - Construímos tudo sem um projeto de execução, fazer é o projeto, não poderia existir de outra forma. Não são máquinas precisas, são a materialização de pensamentos provenientes de debates entre nós. Fazer os objetos é nossa maneira de conversar sobre a própria natureza do que estamos fazendo. Depois tem os instrumentos criados para as performances, eles foram feitos de forma individual para a conversa ao vivo, para a improvisação que realizamos na frente do público. Mas mesmo eles são um diálogo com o que já criamos antes em parceria, assim, na minha visão, é como se a confecção desses instrumentos fossem um momento de reflexão individual para voltarmos à conversas já estabelecidas. 

KN e LV - A instalação da Máquina Orquestra no Museu de Arte de Santa Catarina, em maio de 2017, foi inaugurada com seis apresentações, cada qual envolvendo uma ação performática. Mas, pela primeira vez, a instalação permaneceu no museu por um período de trinta dias, ligada através de um controlador que determina seu tempo de funcionamento. Vocês podem comentar sobre essa transição? 

MM - A instalação funciona sozinha, sem os músicos. Todas as máquinas obedecem às determinações dos regentes. Os regentes mandam ordens para a caixa de controle. A caixa de controle, controla a velocidade dos motores e para qual dos grupos de instrumentos vai o sinal: para as hélices ou os monocórdios. A Radinha também recebe sinal das partituras, e as câmeras de vídeo se alternam também em função do sinal que vem das partituras. Nós, os músicos fazemos a intervenção e mudamos a paisagem da orquestra, transformando a configuração da ambientação sonora. Além disso, nós também recebemos sinal dos regentes e suas partituras milimetradas. E, por fim, tocamos instrumentos, improvisando a partir das sonoridades da orquestra, alterando, recompondo, remodelando assim toda textura sonora da instalação. 

MC - É uma passagem natural, construímos a instalação como um produto-que- produz e se produz, essa coisa da escultura antiga que se mexe e faz algo, que às vezes é nada. Nessa trajetória desde a primeira apresentação no auditório da reitoria da UFMG até a exposição no MASC estabelecemos conversas na instalação em que ela se transforma, fica mais consistente e isso a autonomiza mais. Os elementos biológicos que chamamos vulgarmente de corpos humanos se tornam um pouco mais dispensáveis na composição de apresentação da instalação. 

KN e LV - Quais instrumentos foram criados e acrescentados à Máquina Orquestra durante a residência realizada em Florianópolis, através do Edital Elisabete Anderle? 

MC – Criamos uma nova versão de um instrumento que chamamos de “Radinha”. Ela já funcionou de diferentes maneiras, mas antes de contar sua “evolução”, vou retomar um pouco o funcionamento geral da instalação para contextualizar como ela se moveu nesse “sistema taxonômico”. Os furos nos loops de papel perfurado das pianolas fecham circuitos elétricos emitindo pulsos cuja duração depende do tamanho do furo e da velocidade do motor que transporta o papel. Esses pulsos gerados pelos furos no papel por qualquer das três pianolas passam por um spliter que multiplica as conexões sem misturar os sinais e tem dois destinos diferentes, uma caixa que converte esses sinais elétricos em sinais MIDI (Musical Interface Digital Instruments) e outra caixa que amplifica esses pulsos para que tenham potência para mover os motores elétricos. As relações entre relês, tensões da fonte de energia, campos eletromagnéticos gerados pelas próprias bobinas da radinha, refluxos elétricos e outros fatores nos levaram a provocar dois princípios de incêndio em dias intermináveis de trabalho e frustração depois do quais decidimos mudar de tática. Essa radinha, portanto, recebe os sinais elétricos das pianolas em um circuito eletrônico semelhante ao arduíno, que traduz essas entradas em valores de saída PWM (Pulse Width Modulation) de igual duração e frequências que atribuímos a cada bobina ou conjunto de bobinas em seções de teste e escuta das respostas. 

KN e LV - A cada vez que um instrumento “pifa”, uma nova solução é criada por vocês para que ele permaneça em funcionamento, dificultando assim uma manutenção terceirizada. Como vocês lidam com essa situação? 

MC - É uma característica vital da máquina, “pifar”. Sabemos que elas só funcionam desfuncionando, escultura que se mexe tem vocação a se quebrar, se autodestruir. Um dos motores estéticos mais ricos do trabalho se faz aí. Terceirizar a manutenção não está no horizonte das minhas preocupações. Nessas situações lembro que meu avô me dizia algo como “fatto, disfato, tutti lavorato” apesar de nem ele nem eu falarmos italiano. 

KN e LV - Quais as principais referências artísticas (e não artísticas) para a concepção da Máquina Orquestra? 

MM - Colon Nancarrow, músico americano e compositor para pianola que viveu no México. 

RF - A fantástica máquina músico-erótica de Duran Duran do filme Barbarella de Roger Vadim rodado nos anos 60; a máquina do museu de Emídio Greco, do livro Invenção de Morel de Adolfo Bioy Casares, publicado pela primeira vez em 1940; Clinamen, a máquina de pintar inventada por Alfred Jarry no começo do século XX; a cadeira elétrica desenvolvida por Harold P. Brown que matou pela primeira vez nos anos de 1890; Frankenstain; todas as máquinas de Júlio Verne; o trompe- l`oeil, ou quem sabe a anamorfose. 

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